terça-feira, 27 de outubro de 2009

Onde não existe chão - 5 primeiros contos

Abaixo estão os cinco primeiros contos de "Onde não existe chão". O livro está disponível no site Clube de Autores, para comprá-lo clique aqui.

Onde está Vergara?

Conheci Vergara na sub-realidade de um sonho. Apareceu-me em blusa sem mangas de cor branca. Logo eu que ao acordar esqueço por completo os sonhos que tive fui surpreendido com a lembrança nítida de moça de cabelos amarelos. Um amarelo vivo, natural. Tinha a mesma idade que eu, talvez um ou dois anos a mais. Ao falar comigo com soberania mulheril a minha superioridade de caçador se apagou, perdi o comando ao ouvir de sua boca todas as letras de meu pensamento, como se realmente ela tivesse o dom de capturar consciências.



* * *



Na casa de infância passei por maus bocados, o quintal pequeno, sem grama, provocava calo nos pés nas temporadas de calor, além do meu corpo servir para o desfrute de minhas duas irmãs, ambas maiores que eu. Ao olhar para cima as monstrengas se agigantavam. A patroa, como era chamada minha mãe, protegia o único varão com garras de leoa, contei nos dedos da mão as vezes em que saí portão a fora para brincar com os moleques da rua. A vizinhança não entendia o porquê do excessivo zelo, foram diversas tentativas de alertá-la dos males que a atitude poderia causar em mim, mas ao sentir o mínimo movimento de reprovação a patroa rugia aos quatro cantos e o silêncio inevitável tomava conta da alma de todos. Não tenho lembranças de amigos, avistava algum camarada de idade quando este se instalava no sofá da sala com sua mãe na alçada de visitante, trocávamos olhares insólitos, até arriscava brincadeiras rápidas, porém o medo de gente era maior que a curiosidade, logo estava entrelaçado nas pernas da dona-de-casa ou escondido debaixo da cama. “Gente é perigosa”, dizia mamãe.



* * *



A casada do 501, desde que o marido foi transferido para o turno da noite, me manda e-mails com piadas picantes diariamente. Pela manhã, ao sair para o jogging, encontra-me casualmente no elevador querendo saber se tinha recebido e gostado das historinhas cômicas. Respondi que sim, dei risadas mil. Na verdade, apaguei sem ler a mensagem na ânsia de ser mais uma daquelas correntes que perambulam na internet. Rita, seu nome. Com exceção das coincidências de elevador, nunca tivemos uma conversa prolongada. Tenho de admitir que ela é uma jovem que cuida do corpo, talvez alguma intervenção cirúrgica a ajudou a ter as coisas no lugar. Bendita medicina! As crianças vão para escola logo cedo. Ela sai mais tarde, depois do jogging, vestida de blazer.



* * *



A imagem da casa laranja no subúrbio era tão fulgente que se não fosse por meu corpo estendido em cama com lençol amarrotado o sonho seria um fragmento de realidade.


— Você está enganado!
— O quê?
— Você está enganado!
Ouvi a voz tenra sussurrar, meu espanto saiu engasgado.
— Como assim?
— Eu não sou isso que você está pensando.
— Como leu meu pensamento? Qual o seu nome?
— Não sei como fiz isso. Vergara. Eu me chamo Vergara.



* * *



A tardinha cai na maior cidade do distrito, apesar de ser um homem de trinta anos, a solidão me ajuda em minha incessante busca, preciso alimentar-me de melancolia em cada ponto de ônibus. Ela pode aparecer a qualquer momento. Dirijo à parada de ônibus distante muitos quilômetros do centro, os out-doors não contribuem, ofuscam a imagem de mulher adorada. Não é Vergara que aparece com roupas de grife. Ali, na parada, entremeto-me no grupo que aguarda a condução, não me identifico. Existem mais homens que mulheres. Certamente, ela não está esperando nenhum veículo para ir ao trabalho. Mas pode estar chegando, chegando de algum lugar ou lugar nenhum. Tenho que ficar pronto, aguardar o próximo ônibus. Enquanto não chega a imagem da jovem morena me acariciando e dizendo ao pé do ouvido que me fará uma visita deixa-me confuso, Vergara pode estar incorporada na pele negra de mulher casada, a três apartamentos de distância. Após meia hora de espera ele chega superlotado, o cheiro repulsivo de combustível deixa marca nos narizes. Viso cada rosto que desembarca cansado, degrau a degrau, são dezenas de seres disformes. Ela não veio. Por hoje é o bastante. Amanhã a esperança acordará faminta por nova busca. Do banco de cimento avisto a casa em que um dia estive preso, continua da mesma cor, com o mesmo portão de ferro. O ônibus parte deixando o rastro de medo e diesel.



* * *



A realidade brinca conosco de forma mesquinha. Os pelos pubianos estavam se libertando da casca quando saí das jaulas de casa sem motivo aparente, alcancei a calçada. Uma moça passa bem perto de mim tal imperatriz, sem me notar. Pensei: “é mais uma daquelas meninas cheias de charme que não se meteriam com caras como eu, que estúpida é esta moça tão cheia de vida, inexperiente, com coração duro de pedra. Tenho certeza que se acha a mulher mais atraente do universo”. Se soubesse que era um sonho não teria pensado essa infâmia.



* * *



É noite na cidade grande, uma estranha trafega sob o chão do meu apartamento.
— Este é o seu quarto?
— Não entre aí.
— Oh, calma! Já sei que não é este, não precisa ser grosso. Venha, me sirva logo a vodca. Seu apartamento é muito organizado, nem parece que você é solteiro. Meu marido sempre deixa a toalha na cama.
— Tire a roupa!
— Ah, nem terminei a bebida.
— Cale a boca, nesta noite você terá um outro nome.
— Hum, fetichista e apressado. Qual será meu nome, meu senhor?
— Você saberá em breve. Tire a roupa!



* * *



Aos cinco anos fui vestido de boneca pelas duas meninas grandes e exposto para outras meninas grandes, depois jogado de um lado para outro como brinquedinho de plástico. E isso foi se repetindo durante muito tempo. Minha mãe, conivente, trabalhava o dia inteiro, deixava as duas militares no meu encalço. “Gente é perigosa”, repetia. Apesar das humilhações sempre estive contido nas minhas atitudes, as dores eram suportáveis até conhecer Vergara no mundo da fantasia. Ela me mostrou o caminho certo, mas partiu na bruma de um sonho interrompido. Dois dias depois de nosso primeiro e único contato a dúvida havia sumido dos olhos, as duas irmãs que ainda não estavam casadas e minha mãe foram embora sem fazer malas ou despedidas, simplesmente desapareceram na fumaça das trevas, deixando em mim um gosto açucarado de solidão.



* * *



Não posso esquecer de trancar à chave o quarto que a mulher quase abriu. Mas ela o invadiu depois, inconsciente, seu corpo descansa nu; seus membros não respondem ao chão frio. Mãos e pés estáticos, como a esperar por alguém. Chamo por ela, bem baixinho: Vergara, Vergara...! Não responde, não é Vergara. Sei que a mulher morena e fogosa ficará para sempre neste quarto sem janelas... acompanhada de outras companheiras putrefatas, mulheres não-Vergaras.



* * *



— Vergara. Belo nome. Desculpe pensar assim, às vezes sou meio bobo.
— Não, você não é bobo. Vamos ao ponto comigo. É a primeira vez que leio pensamentos, estou tão surpresa quanto você.
— Eu fui traído por mim mesmo. Estou envergonhado.
— Não fique assim, digo de novo que isso nunca me aconteceu. Foi rápido, li cada palavra de sua cabeça como se saísse mesmo pela sua boca.
— Pois é. Não sei qual força me fez vir à rua agora, simplesmente estou aqui. Encontrei você passando. E esta névoa? Minha vida é estranha para se entender. Nem sei por que sinto uma paz inédita no meu coração.
— Pegue a minha mão, vamos caminhar juntos. Quando estou com medo tento me lembrar de uma pessoa de quem gosto muito. Faça o mesmo.
— Não tenho de quem me lembrar, não tenho de quem gostar.
— Ah, é claro que tem.
— Posso me lembrar de você?
— Por quê?
— Posso?
— Pode.
A parada de ônibus ficava a uma quadra, chegamos em poucos minutos.
— Afinal, quem é você?
— Agora sou uma parte de você, se consegui fazer de seu pensar um livro aberto, você me pertence.
— Minha mãe fala muito em alma, agora entendi. Sua alma é cristalina, seu cheiro doce, sua voz é suave. A amargura que eu sentia desapareceu. Onde você mora?
— Moro aqui perto. E se tudo for um sonho? Estamos neste momento em nossas camas, vestidos de pijama, com mau hálito, fugindo da realidade.
— Ah, impossível!
— E qual sonho é possível?
— Posso te abraçar?
— Claro.
— Teu colo é quente.


Em quinze minutos o ônibus chega para buscar Vergara, estacionou com a crueldade de quem mutila. Neste ínterim, falamos sobre cinema, filosofia e sonhos.


— É hora de dizer adeus, Vergara.
— Não diga isso, em breve nos encontraremos. O amanhã é óbvio demais para não chegar.
— Fugirei de casa novamente, neste mesmo horário.
— Me abraça!

Ao terminar o abraço, beijou-me a boca de leve como um tiro de aviso. E subiu sem pressa os degraus. Acenou com a mão. O ônibus partiu sem deixar que ela me ouvisse dizer que a amava.

O Rebento

Foi na noite de uma quarta-feira que levaram mamãe no carro de passeio. Acordei assustada com a movimentação de pés e vozes; mamãe respirava com dificuldade e andava lentamente com uma das mãos nas costas, meu pai era o auxílio para que não caísse. Mesmo com as poucas horas da noite eu já tinha recebido ordens para dormir, mas agora não poderia, nem a eles cabia o direito de me fazer ir à cama novamente. Com a urgência da situação mal notaram minha pequenina presença na sala a espreitar, belos tempos quando um simples gemido ou um respirar mais ofegante eram motivos para atenção circunspecta. Encontrei mamãe molhada, jorrando muita água de si, derramando por todo percurso que se iniciava na cozinha e dava na sala de estar. Admito que me senti nauseada com a descoberta, é assim que se vem ao mundo: no meio do nojo. Aos poucos fui notando que era o indício da escassez de tempo. Meus tios acompanharam o casal à maternidade, titia se encarregou da limpeza. A megera não enxergou em mim uma possível companheira no esfregão, então virou o corpo num gesto de desdém.


Sentei-me no sofá de canto meio absorta com a repentina correria das gentes grandes. Bocejei algumas vezes antes de ouvir a titia mandar-me voltar ao quarto de dormir. Discordei com a cabeça e um leve gemido, mas sua ignorância era tanta que nem atentou para minha negativa, continuou no serviço doméstico; a ordem tinha por objetivo o luxo do poder, para ela pouco importava se eu iria ficar no sofá, voltar a dormir, dançar na chuva ou morrer de inanição, a estrita premência era a sujeira que pedia para ser removida. Não muito, antes de engatinhar, carregava-me no colo com o orgulho de quase mãe, apresentou-me à vizinha da frente com um carinho sacro e já me reservava destinos para quinze, vinte anos. Escolheu-me advogada, um velho sonho seu que foi demolido, conforme seu dizer, pelos maus professores do colégio secundário. Ouvi papai mencionar à mesa que ela se trancafiou no quarto com medo de gente, chamou-a fracassada. Tornou-se beata muito jovem, às vezes me obrigava a ir à igreja aos domingos, bem cedinho, ouvir os discursos soporíferos do padre; mandava-me rezar o pai-nosso, eu fingia orar em silêncio enquanto pensava no guisado de mamãe e mousse de sobremesa.


Dia desses assistindo à televisão, a repórter entrevistava a mãe de um menino que nascera sem os olhos. Um mal raro de nome esquisito – soava francês –, uma disfunção genética sem possibilidades de ser remediada. Ao abrir os olhos viam-se dois círculos negros, uma cena asquerosa, deveria ser proibida imagens dessa espécie naquele horário. A mãe chorando em árabe e o bebê imóvel como pedra na insistência de não cerrar as pálpebras. Por mais inimaginável começou a brotar em mim um súbito desejo de que o filho de mamãe nascesse assim, com dois buracos negros no rosto, talvez entrevistassem mamãe, as estações de TV ficariam sedentas por filmar o menino sem olhos; nem precisariam viajar a um país distante, o fenômeno residiria em nossa pátria. No fundo o meu irmãozinho seria o orgulho da nação. Os transeuntes apontariam seus dedos indicadores ferozes enquanto a secretária de casa passeava com ele no jardim público, certamente estaria na mídia relatando a sua deficiência, quem sabe ganharia algum dinheiro com isso. Mesmo com essas vantagens, o melhor estava em nossa relação; ele nunca iria me ver, meus cabelos castanhos, minha orelha furada, a girafa de pelúcia na cantoneira, os arranha-céus, o tique nervoso de seu pai. Tamanha vulnerabilidade que precisaria sempre de um ajudante. Eu estaria sempre lá, pronta para ser o cão-guia da infeliz criatura. Na verdade um ente que me pertencia, minha posse com quem compartilharia as coisas, um amigo invisível com a diferença de ser visível. Apertá-lo-ia ao peito com toda força, com o amor fraternal. Com linhas imaginárias nas articulações ele caminharia o meu caminho. Nasceria assim, então. Essa, a única forma, excêntrica de fato, para que eu não o odiasse.


Ao passo que titia terminava o serviço eu me detinha em ver o álbum da família, ela achou estranho, a hora não era própria para aquilo. Algo a impeliu de me repreender e se sentou ao meu lado comentando cada fotografia. “Nessa você tinha três meses” narrava com felicidade de tia. Papai foi cuidadoso em cada detalhe fez um grande livro com as imagens em ordem cronológica, em variados ambientes; sinto falta das noites em que ele contava o dia em que soube da gravidez de mamãe. Estava ao celular numa viagem de negócios, por pouco não bate o carro de trabalho no semáforo, quando freou bruscamente saiu alucinado do veículo e gritou aos companheiros de trânsito “eu vou ser pai!” e num gesto anormal todos os motoristas o aplaudiram, pelo espanto do homem sabiam que era o primeiro. É uma história singela, em cada narração havia um fato que recontado parecia inédito, uma outra entonação, as cenas modificadas de posição perdiam a mesmice e o final, ainda que sabido, ganhava ares de surpresa e tudo terminava num grande abraço entre as almofadas do tapete, rolávamos como os animaizinhos do zoológico. E mamãe! Mamãe tem cheiro de doce de abóbora, em muitos fins-de-semana ficávamos as duas sozinhas em casa, ela aproveitava os dois dias sem doméstica para se dedicar à arte da culinária, me enchia de pudim, torta de avelã, mousse de maracujá e o meu predileto: doce de abóbora. “É pra você ficar com pernas grossas”, dizia. Eu queria ter pernas grossas, acho que era coisa de mulher, não sei, era o que mamãe sempre dizia em conversas com outras, “coisas de mulher”, como se não ter pernas grossas fosse um defeito irrecuperável. “Coma agora, aos dezoito só pensará em dieta”. Então eu comia, mais para agradar mamãe, uma forma de amá-la e ser amada.

Quando mamãe foi criando barriga, papai incumbiu mais secretárias para diversos afazeres, inclusive aos fins-de-semana, a casa ficava muito pequena, apertada. E os dias monótonos. Papai já não tinha mais tempo para histórias e com os meses fui me tornando mais dispensável. “Olha só, sua mãe grávida!”. Já estávamos no final do álbum quando titia apontou a barriga de mamãe, uma barriga estrambótica com protuberâncias nas laterais, tão grande que mal podia andar, era feia a barriga de mamãe, diria mais: repugnante. Melhor seria que murchasse, ficasse a tábua de antes.

Pela manhã meus tios me levaram à maternidade, papai pegou-me nos braços e caminhamos alguns metros até o quarto. Mamãe me viu entrar e me chamou carinhosamente. De início fiquei paralisada com a coisa em seus braços, miúdo como um rato. E me movi com lentidão até à cama. “Este é seu irmãozinho”. Ela segurou a minha mão, fez o mesmo com o da criança, estávamos juntos. Era difícil suportar a dor. Empenhava-me em aparentar normalidade quando, em um instante de distração, o rebento abriu os olhos para mim, grandes, incomuns, assustadores, eram os olhos do próprio demônio, resplandeciam um mal que nunca sentira, antes de fechá-los esboçou um sorriso maroto, imperceptível para muitos, mas que para mim representava o último tiro de uma grande guerra.

No Passeio público

O sol adivinha nossa presença no passeio público. Sua onisciência nos deixa nus. Em meio ao verde Pedro existe inocentemente. Às vezes olha para mim e sorri como se dissesse: — Veja papai, como a vida é bela! Tão doce criança... numa doce escravidão. No balanço ele sente o vento do rosto e esboça um momentâneo vôo com os braços abertos, escala as árvores como os amigos e de lá vê os adultos na tentativa infeliz de esquecerem suas vidas burocráticas. É um tal de brincar de pique ali e acolá. E Pedro vai tecendo-se de felicidade. Pior é saber que um dia ele morrerá e nascerá homem. Queria que ele nunca crescesse, ficasse miúdo para sempre como Peter Pan.

Este sol que não nos deixa em paz vive nos alertando de nossa existência. O sol não castiga Pedro, banha-o, apenas. Tento esquecer o sol. Pergunto: — Pedro, o que você vai ser quando crescer?! Sem titubear ele responde, de cima da árvore: — Astronauta! Êta moleque, e pensar que já fui assim. Bom seria se vivesse mesmo como um astronauta, sem pés fincados na Terra. Vivesse em Mercúrio. Sozinho. Um Robinson Crusoé em Mercúrio. Um Mercúrio tropical. E construísse um Castelo só seu. E como em Mercúrio o ano só tem oitenta e oito dias ele viveria uns trezentos anos sem fúria. Um Mercúrio cheio de balanços, gangorras e escorregas.

O banco, as árvores, os brinquedos, o lago, o algodão-doce, tudo cheira a sol. Pedro absorve o aroma como ópio. Talvez a sua intensa vontade de movimentar o corpo é oriunda de desejos alucinógenos. Cheio de si, ele enfrenta o desafio de entrar no labirinto de tubos, a enganar a amiguinha, fugindo do Minotauro, logo a mocinha o descobre e desabam em risos, e tudo é esbórnia, tudo é felicidade. A felicidade estampa o rosto de Pedro quando me flagra olhando o decote da moça do lado, um sorriso que se traduz: — Papai, olhe que eu vou contar para mamãe... disfarço e o menino continua sendo livre. Guardou-se um segredo. Pela primeira vez somos cúmplices.

O sol também é nosso cúmplice. A tríade do demônio. Essa relação de cumplicidade inexiste. Poderia estar descansando em casa, mas estou observando Pedro ser ele mesmo, e os outros sendo outros. Pedro e as crianças não são feitos de sal. Eu sou. Um sal de indústria. Minha vida iodada não me deixa conversar com Pedro. E ficamos assim, em mundos diferentes. A minha existência executiva impede-me de ter amor. Sou seco como as pilhas de papéis da escrivaninha. Até os papéis amam nas palavras do poeta. Não valho uma folha de papel poética. Pedro tem amor. Pedro é só amor. Ele me ama, mesmo que eu não mereça. Dou de ombros... o que se há de fazer? Fugir? Não. Não sou aventureiro. E qual é o valor de Pedro? Os vermes vão comê-lo, quem sabe antes de mim. A diferença entre nós é que Pedro não existe nesse mundo.

O sol ameaça ir. Graças aos Céus! De paletó no braço, ameaço chamar Pedro para ir. Não, esperemos um pouco mais. Nem sei como está na escola, nem quem são seus amigos ou sua música preferida. Ele é apenas filho, nada mais. A mãe dele tem um amante, eu sei. Não me importo, é mais um contrato. Não existo para ela. Nem sei do que ela gosta, o que quer da vida. Inexisto-a. Pedro brinca, brinca. É angustiante vê-lo feliz.

Dessa vez vamos. Despede-se dos amigos que também acompanham seus pais. O sol abandonou-o. Sorri e rouba-me um sorriso desleal. Caminhamos. O frio alcança Pedro, que reclama. Visto-o com o paletó. Ele estende a mão e aperta fortemente a minha. Sente-se protegido. Sente-se um filho. Seus olhos pedem para que eu seja pai. Ignoro. O amanhã insiste em vingar. Espero que ele não descubra que um dia existiu inutilmente no passeio público.

Eu e outras desafinações

Ambrósio acomoda-se na cadeira de dez anos. Veio-lhe um incômodo por sentar-se na mesma cadeira, ninguém pensara em trocá-la com tantos anos de uso.

— Meus Deus! Onde você estava? Já passam das dez.
A reclamação do Sousa já não o afligia tanto.
— Por aí...
— Por aí?
— É, por aí.
— Como por aí?
— Por aí, ora.

Antes da religiosa panqueca, o funcionário despede-se da mulher. Ele vai rumo ao trabalho com sua maleta ocre, uma mancha discreta de café na gravata e um automóvel. Estanca no jardim municipal com reminiscências e um copo de conhaque. A visão da garçonete em patins o faz bem. As pernas em saia curta dão a esperança de não ter expediente hoje, as horas passando sem compromisso de relógio e o conhaque descendo deliciosamente pela garganta logo de manhãzinha.

O antigo palco dos concertos. Eis que ainda está de pé em meio ao ambiente arborizado do passeio público. No ar as mãos tenazes do maestro regendo a orquestra ao som de tubas, violoncelos, oboés, violas e... violinos. Pensar em violino lhe causava uma certa dor, quem sabe um bom baixo ou uma clarineta diminuísse a angústia de não tocar um instrumento. E tudo isso por papéis frios e uma máquina de escrever sem o número um.

Na juventude cultivava na música um baluarte. Ganhara, no Natal, um violino de segunda mão. Seu pai fez um grande esforço para comprá-lo, na empresa muitas horas extras, em casa alguns cortes orçamentários; ao cabo de um ano chegava em casa com um estojo grande, preto, em forma de mulher anã.

— Ambrósio, feliz natal!

Na abertura do estojo, Ambrósio abraçou o pai com veemência.

— Eu te amo, velho! — respondeu ainda espantado com o presente.
— Se realmente me ama, toque Mozart para mim.

Ambrósio segurou o violino olhou os ouvidos, o estandarte, o cavalete e suspirou de emoção. Era belíssimo! Fez menção de perguntar o preço, mas declinou do projeto. Passou ao pai com carinho. Este retesou e afrouxou as cordas nas cravelhas até achar a afinação ideal. O instante era de solenidade. Ambrósio empunhou o arco com a mão direita, o violino no pescoço. Aos poucos as notas foram se desenhando no movimento rápido dos braços do jovem. De repente o pai gritou com alegria:

— Sinfonia nº 40 em sol menor!

O músico acenou positivamente com a cabeça enquanto se debruçava no instrumento tal coisa cobiçada. De olhos cerrados mal sentia a presença do pai, do mundo, aliás. O corpo maleável, levado pela musicalidade numa espécie de transe. O arco atacava com perfeita dicção produzindo uma inalienável dádiva aos ouvidos do pai.

— Bravo! Bravíssimo! — bradava entre aplausos.

Parou no exato tempo da desafinação. Cordas novas desafinam com facilidade. A cena ficou tatuada na memória como uma espécie de elo.

— Ambrósio!

Segue o chamamento com os olhos e encontra um homem andando afoito até à mesa do café com uma bolsa grande em forma de tubo.

— Ambrósio, quantas eras meu amigo! Tomando um leve conhaque cedinho? Relembrando os velhos tempos de boemia?

Olha-o com os dentes enquanto o cérebro trabalha em busca de algum fichário da pessoa. Vasculha as gavetas e nada, nenhuma pasta na cabeça que indique o aparente amigo.

— O que anda fazendo da vida?
— Trabalho em uma empresa de exportação.

Um grito de socorro. Quem é este homem, meu Deus? Alguém do colégio, da faculdade, um cliente? Cliente não, pelas vestes e intimidades é impossível. Agora pedia um conhaque também, quão inoportuno o desconhecido.

— Empresa de exportação?! — o outro exclamou enquanto acendia um cigarro.
— Sim.
— E a música hombre?! — perguntou antes do assovio de uma canção popular.

Ah, deve ser alguém da orquestra. Tempos de explosão juvenil, uma vontade que o tempo comeu com prazer.

— Desisti há tempos.
— Logo tu, um virtuose no violino, menestrel das serenatas. Não brinque comigo, Ambrósio. E que gravata ridícula. Não tem vergonha?

O desgraçado sabe seu nome. Talvez saiba muito mais, está espreitando desde muito. O que ele quer? Dinheiro? Algumas doses de conhaque? Poderia pedir o que quisesse, daria somente pelo gosto de vê-lo longe. Além disso, traz de novo o passado da música, com glória o que é pior; deixe Ambrósio com seu inocente conhaque, verme.

— Acho que você está exagerando, eu era um violonista comum.
— Não, você é um funcionário comum!

Ele não está para brincadeira, a expressão quase arrotada foi uma punhalada certeira. A cena do natal com violino intrometia-se nas veias de Ambrósio.

— O que sabe de mim?
— O bastante para chamá-lo de tolo. Nem vão acreditar que o Menestrel abandonou a arte musical para se dedicar à burocracia.

Agora é demais, ofensas em meio a diálogo com indivíduo não identificado. Adentrou o espaço como um invasor e já se dá ao direito de definir o que é certo e o que é errado.

— Teremos um concerto hoje à noite no antigo palco, venha nos assistir.
— Talvez eu vá.
— Que desdém, meu Deus! Você se tornou coisa, Ambrósio.
— Prezado, tomou muito conhaque.
— Ambrósio, está sempre assim, sereno? Exploda, hombre! Rasgue essa gravata. Tome lá uma canção.

Sacou da valise um fagote. Estranho, pois Ambrósio não se lembrava de ninguém que soubesse tocar fagote na orquestra. Não se costumava incluir instrumentos de sopro desse tipo na orquestra de câmara, em uma ou outra ocasião, coisa rara. Quem era este ser? Podia não se lembrar dele, mas se lembrava que comumente utilizavam a formação clássica com algumas variações: duetos, trios, quartetos, quintetos e sextetos. Aliás, poucos se aventuravam em experimentar o fagote por ser de execução difícil com chaves dispostas sem ordem.

Da boca do músico surgia o som grave, que de modo algum embrulhava o estômago; os dedos articulados e o sopro correto culminavam numa velha melodia que há anos não era ouvida, apesar da pureza fez com que Ambrósio relembrasse amores selvagens sobre uma grande macieira, uma macieira vistosa que apenas existia sem lugar geográfico, apenas sabia que existia, a macieira e as mulheres, tudo cabia em um som grave de fagote.

— Concerto para fagote em si bemol maior!
— Ainda apaixonado por Mozart?
— Estou atrasado.
— Para quê?
— Para trabalhar.
— E daí?
— Você toca em uma orquestra, entende o significado da pontualidade.
— A arte é sempre pontual, ela merece; mas viver uma vida rodeada de fluxogramas, pilhas de documentos, sentado numa mesma cadeira é deprimente. O horário deve ser deflorado todos os dias. E aquela máquina de escrever chata. Tec, tec, tec.

O estranho tinha razão. A irritação contínua pelo barulho da máquina de escrever; sempre substituir o número um pela letra L minúscula.

— Como sabe disso?
— Do quê?
— Da cadeira, da máquina de escrever. Anda me espionando?
— Ah, Ambrósio, onde está o violino?
— Eu fiz uma pergunta, meu caro.
— Toque o violino de novo, procure respostas nas melodias suspensas.
— Quer me deixar louco, tocar violino não vai ajudar. Ser músico é ser instável, porque apareceu neste café? Eu estava tranqüilamente tomando...
— Morra e ficará tranqüilo!
— Não gosto de aventuras.
— Entendo, gosta de se atrasar sentado em um café remoendo-se com a visão do antigo palco. Ainda pensas em seu pai?
— Deixe-o fora desta conversa.
— Ele nunca o perdoou, morreu de desgosto. Você o traiu, Ambrósio.
— Já avisei...
— Você tem um belo carro.
— O que quer?
— Uma bela casa.
— O que quer estranho?
— Estranho, não me reconhece?
— Não, não me lembro de você, nem quero lembrar. Ninguém tocava fagote tão bem na orquestra.
— Me chame como quiser o que escolher será o meu nome. Toque o violino!
Levantou-se, o homem.
— Preciso ir, o último gole do maravilhoso conhaque! Um brinde a você, Ambrósio, ao seu medo de ser mais, a cada dia medíocre, à cadeira que suporta o seu traseiro gordo por uma década, à sujeira que cobre o violino trancafiado no armário do porão, à orquestra, à sua consciência e a Mozart, o eterno.

Dizendo isso desapareceu em um redemoinho no jardim municipal sem pagar pelo conhaque. Como se perdesse a matéria, tornando-se pó.

— Preciso de uma explicação, Ambrósio.
— O que mais preciso dizer Sousa? Dê-me um tempo.
— Tempo? Está vendo aquele ponteiro menor? Está no dez e o outro também, significa que não temos tempo. O francês deve chegar em menos de uma hora, seja gentil e lave esse rosto, você está um trapo.

Os anos foram se esvaindo. Um dia, sem se dar conta, Ambrósio estava aposentado. Morreu pouco depois sem Mozart, sem violino, sem um amigo real, registrado no submundo da estatística, apenas.

A Refeição

Incomoda-me seu jeito de fitar, degustando vinho na outra mesa. Posso até adivinhar os pensamentos mais sórdidos pendulando num compasso ameaçador. Encerrei a revista momentaneamente e cruzei as pernas sem pressa de entrelaçá-las, a intenção era a de desafiar quem estivesse em vigia, observando as mais ínfimas nuances de corpo e derrotá-lo de maneira impiedosa. Eis-me presa num jogo de morte de frente ao mar, um mar estanque, desondado, sereno como os transeuntes que insistem em andar como zumbis e claro da cor de lua.

Um simples gesto e faço o garçom vir a mim, diligente e serviçal, com ouvidos atentos na boca vermelha de mulher; peço um vinho tinto e ele se retira pé ante pé, evitando virar o rosto ébano para nova espiada, talvez com receio de se transformar em estátua de sal. Notei sua análise quando se aproximou, disfarçando muito bem; qualquer desatenção me convenceria que era um garçom sério, sem desejo por clientes de seios. “Não olhes para trás”, eis a repreensão de sua consciência. Mas ele volveu a cabeça e fixou a retina nas pernas cruzadas e no decote sem manchas, em fração de segundos, crente de que eu não previa seus movimentos. Respirou aliviado ao notar que era de carne e osso ainda.

O outro da mesa - o espião - se fez de bom moço e lançou-me uma piscadela marota decifrando-me como boa moça, arremessou dados na esperança de um deus que demarcasse todo o tempo e espaço e o fizesse vitorioso no jogo amargo do amor. Bebi o primeiro gole de vinho tinto, fiz-me boa moça como a muito não ousava, pedi o prato principal ao garçom que também insistia em tomar-me com olhos de luxúria a espera de um desejo recíproco que não existia. Pobre alma penada! Por que os homens pensam que podem tudo? Ora, ora.

Os carros passam e penso nas sauditas que não podem dirigir e muitas vezes apanham caladas; deixo-me sentir em sintonia com a angústia de todas as mulheres. Enquanto isso neste lado do hemisfério os homens gostam de brincar de gato e rato em mesas de bar sem receio de punição e os garçons se fazem machos para as clientes e as mulheres se fazem fêmeas nos ardores da noite. A vida se resume enfim em caçadores e caçados, em comida e comedores, promovendo uma dialética ao infinito. Decifrado então o grande mistério, somos apenas refeição e isso basta, deleitem-se senhores com o poder da boca em comer, comer e comer, o beijo é o princípio voraz do grande circo. E todos me comiam naquele lugar com tragos de cerveja, os garçons esperavam as migalhas caírem para chafurdarem-se, no final todos queriam a mesma coisa.

Sentou-se impávido e dono em minha frente, cumprimentou-me com trejeitos de quem conquistara terra rica. Fez-se rogado, sugeriu-me um vinho branco, redargüi com desdém bebendo sutilmente o vinho tinto. Ele estava gostando daquele nível de dificuldade, verteu a recusa em um jogo do amor, narrou uma breve autobiografia e muitos dotes a fim de despertar meu instinto feminino e premente. Ora, ora. O garçom deixou o prato principal, ao avistar o intruso atirou-lhe um olhar de morte e se não fosse o uniforme de trabalho tê-lo-ia expulsado a pontapés e me servido por toda a eternidade.

De relance, percebi minha boca colada na do homem que chegara da outra mesa, era justamente o que eu queria. Ao se desvencilhar e passar a língua nos lábios não os encontrou, passou o dedo e viu o sangue escorrer. Virou-se para mim, mirou-me mastigando seus lábios. Arregalou os olhos, nunca tinha visto nada igual. Tomei sua mão e cravei os dentes em cada um dos dedos, jogando as unhas fora. Em seguida despedacei o antebraço e braço, primeiro o esquerdo, o direito veio depois. E assim fui retirando o globo ocular, as orelhas e o nariz, algumas partes, por educação, comi com talher. Depois o pâncreas, o baço, os rins, o coração, até restar apenas ossos e migalhas de homem. Pedi um vinho tinto ao garçom. Ele o trouxe, observando os destroços do inimigo espalhados na cadeira, no chão e na mesa, feliz por não existir ninguém no seu caminho. Ele me olhava como um caçador enquanto eu bebia tranquilamente o vinho tinto.