terça-feira, 27 de outubro de 2009

Onde está Vergara?

Conheci Vergara na sub-realidade de um sonho. Apareceu-me em blusa sem mangas de cor branca. Logo eu que ao acordar esqueço por completo os sonhos que tive fui surpreendido com a lembrança nítida de moça de cabelos amarelos. Um amarelo vivo, natural. Tinha a mesma idade que eu, talvez um ou dois anos a mais. Ao falar comigo com soberania mulheril a minha superioridade de caçador se apagou, perdi o comando ao ouvir de sua boca todas as letras de meu pensamento, como se realmente ela tivesse o dom de capturar consciências.



* * *



Na casa de infância passei por maus bocados, o quintal pequeno, sem grama, provocava calo nos pés nas temporadas de calor, além do meu corpo servir para o desfrute de minhas duas irmãs, ambas maiores que eu. Ao olhar para cima as monstrengas se agigantavam. A patroa, como era chamada minha mãe, protegia o único varão com garras de leoa, contei nos dedos da mão as vezes em que saí portão a fora para brincar com os moleques da rua. A vizinhança não entendia o porquê do excessivo zelo, foram diversas tentativas de alertá-la dos males que a atitude poderia causar em mim, mas ao sentir o mínimo movimento de reprovação a patroa rugia aos quatro cantos e o silêncio inevitável tomava conta da alma de todos. Não tenho lembranças de amigos, avistava algum camarada de idade quando este se instalava no sofá da sala com sua mãe na alçada de visitante, trocávamos olhares insólitos, até arriscava brincadeiras rápidas, porém o medo de gente era maior que a curiosidade, logo estava entrelaçado nas pernas da dona-de-casa ou escondido debaixo da cama. “Gente é perigosa”, dizia mamãe.



* * *



A casada do 501, desde que o marido foi transferido para o turno da noite, me manda e-mails com piadas picantes diariamente. Pela manhã, ao sair para o jogging, encontra-me casualmente no elevador querendo saber se tinha recebido e gostado das historinhas cômicas. Respondi que sim, dei risadas mil. Na verdade, apaguei sem ler a mensagem na ânsia de ser mais uma daquelas correntes que perambulam na internet. Rita, seu nome. Com exceção das coincidências de elevador, nunca tivemos uma conversa prolongada. Tenho de admitir que ela é uma jovem que cuida do corpo, talvez alguma intervenção cirúrgica a ajudou a ter as coisas no lugar. Bendita medicina! As crianças vão para escola logo cedo. Ela sai mais tarde, depois do jogging, vestida de blazer.



* * *



A imagem da casa laranja no subúrbio era tão fulgente que se não fosse por meu corpo estendido em cama com lençol amarrotado o sonho seria um fragmento de realidade.


— Você está enganado!
— O quê?
— Você está enganado!
Ouvi a voz tenra sussurrar, meu espanto saiu engasgado.
— Como assim?
— Eu não sou isso que você está pensando.
— Como leu meu pensamento? Qual o seu nome?
— Não sei como fiz isso. Vergara. Eu me chamo Vergara.



* * *



A tardinha cai na maior cidade do distrito, apesar de ser um homem de trinta anos, a solidão me ajuda em minha incessante busca, preciso alimentar-me de melancolia em cada ponto de ônibus. Ela pode aparecer a qualquer momento. Dirijo à parada de ônibus distante muitos quilômetros do centro, os out-doors não contribuem, ofuscam a imagem de mulher adorada. Não é Vergara que aparece com roupas de grife. Ali, na parada, entremeto-me no grupo que aguarda a condução, não me identifico. Existem mais homens que mulheres. Certamente, ela não está esperando nenhum veículo para ir ao trabalho. Mas pode estar chegando, chegando de algum lugar ou lugar nenhum. Tenho que ficar pronto, aguardar o próximo ônibus. Enquanto não chega a imagem da jovem morena me acariciando e dizendo ao pé do ouvido que me fará uma visita deixa-me confuso, Vergara pode estar incorporada na pele negra de mulher casada, a três apartamentos de distância. Após meia hora de espera ele chega superlotado, o cheiro repulsivo de combustível deixa marca nos narizes. Viso cada rosto que desembarca cansado, degrau a degrau, são dezenas de seres disformes. Ela não veio. Por hoje é o bastante. Amanhã a esperança acordará faminta por nova busca. Do banco de cimento avisto a casa em que um dia estive preso, continua da mesma cor, com o mesmo portão de ferro. O ônibus parte deixando o rastro de medo e diesel.



* * *



A realidade brinca conosco de forma mesquinha. Os pelos pubianos estavam se libertando da casca quando saí das jaulas de casa sem motivo aparente, alcancei a calçada. Uma moça passa bem perto de mim tal imperatriz, sem me notar. Pensei: “é mais uma daquelas meninas cheias de charme que não se meteriam com caras como eu, que estúpida é esta moça tão cheia de vida, inexperiente, com coração duro de pedra. Tenho certeza que se acha a mulher mais atraente do universo”. Se soubesse que era um sonho não teria pensado essa infâmia.



* * *



É noite na cidade grande, uma estranha trafega sob o chão do meu apartamento.
— Este é o seu quarto?
— Não entre aí.
— Oh, calma! Já sei que não é este, não precisa ser grosso. Venha, me sirva logo a vodca. Seu apartamento é muito organizado, nem parece que você é solteiro. Meu marido sempre deixa a toalha na cama.
— Tire a roupa!
— Ah, nem terminei a bebida.
— Cale a boca, nesta noite você terá um outro nome.
— Hum, fetichista e apressado. Qual será meu nome, meu senhor?
— Você saberá em breve. Tire a roupa!



* * *



Aos cinco anos fui vestido de boneca pelas duas meninas grandes e exposto para outras meninas grandes, depois jogado de um lado para outro como brinquedinho de plástico. E isso foi se repetindo durante muito tempo. Minha mãe, conivente, trabalhava o dia inteiro, deixava as duas militares no meu encalço. “Gente é perigosa”, repetia. Apesar das humilhações sempre estive contido nas minhas atitudes, as dores eram suportáveis até conhecer Vergara no mundo da fantasia. Ela me mostrou o caminho certo, mas partiu na bruma de um sonho interrompido. Dois dias depois de nosso primeiro e único contato a dúvida havia sumido dos olhos, as duas irmãs que ainda não estavam casadas e minha mãe foram embora sem fazer malas ou despedidas, simplesmente desapareceram na fumaça das trevas, deixando em mim um gosto açucarado de solidão.



* * *



Não posso esquecer de trancar à chave o quarto que a mulher quase abriu. Mas ela o invadiu depois, inconsciente, seu corpo descansa nu; seus membros não respondem ao chão frio. Mãos e pés estáticos, como a esperar por alguém. Chamo por ela, bem baixinho: Vergara, Vergara...! Não responde, não é Vergara. Sei que a mulher morena e fogosa ficará para sempre neste quarto sem janelas... acompanhada de outras companheiras putrefatas, mulheres não-Vergaras.



* * *



— Vergara. Belo nome. Desculpe pensar assim, às vezes sou meio bobo.
— Não, você não é bobo. Vamos ao ponto comigo. É a primeira vez que leio pensamentos, estou tão surpresa quanto você.
— Eu fui traído por mim mesmo. Estou envergonhado.
— Não fique assim, digo de novo que isso nunca me aconteceu. Foi rápido, li cada palavra de sua cabeça como se saísse mesmo pela sua boca.
— Pois é. Não sei qual força me fez vir à rua agora, simplesmente estou aqui. Encontrei você passando. E esta névoa? Minha vida é estranha para se entender. Nem sei por que sinto uma paz inédita no meu coração.
— Pegue a minha mão, vamos caminhar juntos. Quando estou com medo tento me lembrar de uma pessoa de quem gosto muito. Faça o mesmo.
— Não tenho de quem me lembrar, não tenho de quem gostar.
— Ah, é claro que tem.
— Posso me lembrar de você?
— Por quê?
— Posso?
— Pode.
A parada de ônibus ficava a uma quadra, chegamos em poucos minutos.
— Afinal, quem é você?
— Agora sou uma parte de você, se consegui fazer de seu pensar um livro aberto, você me pertence.
— Minha mãe fala muito em alma, agora entendi. Sua alma é cristalina, seu cheiro doce, sua voz é suave. A amargura que eu sentia desapareceu. Onde você mora?
— Moro aqui perto. E se tudo for um sonho? Estamos neste momento em nossas camas, vestidos de pijama, com mau hálito, fugindo da realidade.
— Ah, impossível!
— E qual sonho é possível?
— Posso te abraçar?
— Claro.
— Teu colo é quente.


Em quinze minutos o ônibus chega para buscar Vergara, estacionou com a crueldade de quem mutila. Neste ínterim, falamos sobre cinema, filosofia e sonhos.


— É hora de dizer adeus, Vergara.
— Não diga isso, em breve nos encontraremos. O amanhã é óbvio demais para não chegar.
— Fugirei de casa novamente, neste mesmo horário.
— Me abraça!

Ao terminar o abraço, beijou-me a boca de leve como um tiro de aviso. E subiu sem pressa os degraus. Acenou com a mão. O ônibus partiu sem deixar que ela me ouvisse dizer que a amava.

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