terça-feira, 27 de outubro de 2009

No Passeio público

O sol adivinha nossa presença no passeio público. Sua onisciência nos deixa nus. Em meio ao verde Pedro existe inocentemente. Às vezes olha para mim e sorri como se dissesse: — Veja papai, como a vida é bela! Tão doce criança... numa doce escravidão. No balanço ele sente o vento do rosto e esboça um momentâneo vôo com os braços abertos, escala as árvores como os amigos e de lá vê os adultos na tentativa infeliz de esquecerem suas vidas burocráticas. É um tal de brincar de pique ali e acolá. E Pedro vai tecendo-se de felicidade. Pior é saber que um dia ele morrerá e nascerá homem. Queria que ele nunca crescesse, ficasse miúdo para sempre como Peter Pan.

Este sol que não nos deixa em paz vive nos alertando de nossa existência. O sol não castiga Pedro, banha-o, apenas. Tento esquecer o sol. Pergunto: — Pedro, o que você vai ser quando crescer?! Sem titubear ele responde, de cima da árvore: — Astronauta! Êta moleque, e pensar que já fui assim. Bom seria se vivesse mesmo como um astronauta, sem pés fincados na Terra. Vivesse em Mercúrio. Sozinho. Um Robinson Crusoé em Mercúrio. Um Mercúrio tropical. E construísse um Castelo só seu. E como em Mercúrio o ano só tem oitenta e oito dias ele viveria uns trezentos anos sem fúria. Um Mercúrio cheio de balanços, gangorras e escorregas.

O banco, as árvores, os brinquedos, o lago, o algodão-doce, tudo cheira a sol. Pedro absorve o aroma como ópio. Talvez a sua intensa vontade de movimentar o corpo é oriunda de desejos alucinógenos. Cheio de si, ele enfrenta o desafio de entrar no labirinto de tubos, a enganar a amiguinha, fugindo do Minotauro, logo a mocinha o descobre e desabam em risos, e tudo é esbórnia, tudo é felicidade. A felicidade estampa o rosto de Pedro quando me flagra olhando o decote da moça do lado, um sorriso que se traduz: — Papai, olhe que eu vou contar para mamãe... disfarço e o menino continua sendo livre. Guardou-se um segredo. Pela primeira vez somos cúmplices.

O sol também é nosso cúmplice. A tríade do demônio. Essa relação de cumplicidade inexiste. Poderia estar descansando em casa, mas estou observando Pedro ser ele mesmo, e os outros sendo outros. Pedro e as crianças não são feitos de sal. Eu sou. Um sal de indústria. Minha vida iodada não me deixa conversar com Pedro. E ficamos assim, em mundos diferentes. A minha existência executiva impede-me de ter amor. Sou seco como as pilhas de papéis da escrivaninha. Até os papéis amam nas palavras do poeta. Não valho uma folha de papel poética. Pedro tem amor. Pedro é só amor. Ele me ama, mesmo que eu não mereça. Dou de ombros... o que se há de fazer? Fugir? Não. Não sou aventureiro. E qual é o valor de Pedro? Os vermes vão comê-lo, quem sabe antes de mim. A diferença entre nós é que Pedro não existe nesse mundo.

O sol ameaça ir. Graças aos Céus! De paletó no braço, ameaço chamar Pedro para ir. Não, esperemos um pouco mais. Nem sei como está na escola, nem quem são seus amigos ou sua música preferida. Ele é apenas filho, nada mais. A mãe dele tem um amante, eu sei. Não me importo, é mais um contrato. Não existo para ela. Nem sei do que ela gosta, o que quer da vida. Inexisto-a. Pedro brinca, brinca. É angustiante vê-lo feliz.

Dessa vez vamos. Despede-se dos amigos que também acompanham seus pais. O sol abandonou-o. Sorri e rouba-me um sorriso desleal. Caminhamos. O frio alcança Pedro, que reclama. Visto-o com o paletó. Ele estende a mão e aperta fortemente a minha. Sente-se protegido. Sente-se um filho. Seus olhos pedem para que eu seja pai. Ignoro. O amanhã insiste em vingar. Espero que ele não descubra que um dia existiu inutilmente no passeio público.

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