terça-feira, 27 de outubro de 2009

A Refeição

Incomoda-me seu jeito de fitar, degustando vinho na outra mesa. Posso até adivinhar os pensamentos mais sórdidos pendulando num compasso ameaçador. Encerrei a revista momentaneamente e cruzei as pernas sem pressa de entrelaçá-las, a intenção era a de desafiar quem estivesse em vigia, observando as mais ínfimas nuances de corpo e derrotá-lo de maneira impiedosa. Eis-me presa num jogo de morte de frente ao mar, um mar estanque, desondado, sereno como os transeuntes que insistem em andar como zumbis e claro da cor de lua.

Um simples gesto e faço o garçom vir a mim, diligente e serviçal, com ouvidos atentos na boca vermelha de mulher; peço um vinho tinto e ele se retira pé ante pé, evitando virar o rosto ébano para nova espiada, talvez com receio de se transformar em estátua de sal. Notei sua análise quando se aproximou, disfarçando muito bem; qualquer desatenção me convenceria que era um garçom sério, sem desejo por clientes de seios. “Não olhes para trás”, eis a repreensão de sua consciência. Mas ele volveu a cabeça e fixou a retina nas pernas cruzadas e no decote sem manchas, em fração de segundos, crente de que eu não previa seus movimentos. Respirou aliviado ao notar que era de carne e osso ainda.

O outro da mesa - o espião - se fez de bom moço e lançou-me uma piscadela marota decifrando-me como boa moça, arremessou dados na esperança de um deus que demarcasse todo o tempo e espaço e o fizesse vitorioso no jogo amargo do amor. Bebi o primeiro gole de vinho tinto, fiz-me boa moça como a muito não ousava, pedi o prato principal ao garçom que também insistia em tomar-me com olhos de luxúria a espera de um desejo recíproco que não existia. Pobre alma penada! Por que os homens pensam que podem tudo? Ora, ora.

Os carros passam e penso nas sauditas que não podem dirigir e muitas vezes apanham caladas; deixo-me sentir em sintonia com a angústia de todas as mulheres. Enquanto isso neste lado do hemisfério os homens gostam de brincar de gato e rato em mesas de bar sem receio de punição e os garçons se fazem machos para as clientes e as mulheres se fazem fêmeas nos ardores da noite. A vida se resume enfim em caçadores e caçados, em comida e comedores, promovendo uma dialética ao infinito. Decifrado então o grande mistério, somos apenas refeição e isso basta, deleitem-se senhores com o poder da boca em comer, comer e comer, o beijo é o princípio voraz do grande circo. E todos me comiam naquele lugar com tragos de cerveja, os garçons esperavam as migalhas caírem para chafurdarem-se, no final todos queriam a mesma coisa.

Sentou-se impávido e dono em minha frente, cumprimentou-me com trejeitos de quem conquistara terra rica. Fez-se rogado, sugeriu-me um vinho branco, redargüi com desdém bebendo sutilmente o vinho tinto. Ele estava gostando daquele nível de dificuldade, verteu a recusa em um jogo do amor, narrou uma breve autobiografia e muitos dotes a fim de despertar meu instinto feminino e premente. Ora, ora. O garçom deixou o prato principal, ao avistar o intruso atirou-lhe um olhar de morte e se não fosse o uniforme de trabalho tê-lo-ia expulsado a pontapés e me servido por toda a eternidade.

De relance, percebi minha boca colada na do homem que chegara da outra mesa, era justamente o que eu queria. Ao se desvencilhar e passar a língua nos lábios não os encontrou, passou o dedo e viu o sangue escorrer. Virou-se para mim, mirou-me mastigando seus lábios. Arregalou os olhos, nunca tinha visto nada igual. Tomei sua mão e cravei os dentes em cada um dos dedos, jogando as unhas fora. Em seguida despedacei o antebraço e braço, primeiro o esquerdo, o direito veio depois. E assim fui retirando o globo ocular, as orelhas e o nariz, algumas partes, por educação, comi com talher. Depois o pâncreas, o baço, os rins, o coração, até restar apenas ossos e migalhas de homem. Pedi um vinho tinto ao garçom. Ele o trouxe, observando os destroços do inimigo espalhados na cadeira, no chão e na mesa, feliz por não existir ninguém no seu caminho. Ele me olhava como um caçador enquanto eu bebia tranquilamente o vinho tinto.

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