terça-feira, 27 de outubro de 2009

Eu e outras desafinações

Ambrósio acomoda-se na cadeira de dez anos. Veio-lhe um incômodo por sentar-se na mesma cadeira, ninguém pensara em trocá-la com tantos anos de uso.

— Meus Deus! Onde você estava? Já passam das dez.
A reclamação do Sousa já não o afligia tanto.
— Por aí...
— Por aí?
— É, por aí.
— Como por aí?
— Por aí, ora.

Antes da religiosa panqueca, o funcionário despede-se da mulher. Ele vai rumo ao trabalho com sua maleta ocre, uma mancha discreta de café na gravata e um automóvel. Estanca no jardim municipal com reminiscências e um copo de conhaque. A visão da garçonete em patins o faz bem. As pernas em saia curta dão a esperança de não ter expediente hoje, as horas passando sem compromisso de relógio e o conhaque descendo deliciosamente pela garganta logo de manhãzinha.

O antigo palco dos concertos. Eis que ainda está de pé em meio ao ambiente arborizado do passeio público. No ar as mãos tenazes do maestro regendo a orquestra ao som de tubas, violoncelos, oboés, violas e... violinos. Pensar em violino lhe causava uma certa dor, quem sabe um bom baixo ou uma clarineta diminuísse a angústia de não tocar um instrumento. E tudo isso por papéis frios e uma máquina de escrever sem o número um.

Na juventude cultivava na música um baluarte. Ganhara, no Natal, um violino de segunda mão. Seu pai fez um grande esforço para comprá-lo, na empresa muitas horas extras, em casa alguns cortes orçamentários; ao cabo de um ano chegava em casa com um estojo grande, preto, em forma de mulher anã.

— Ambrósio, feliz natal!

Na abertura do estojo, Ambrósio abraçou o pai com veemência.

— Eu te amo, velho! — respondeu ainda espantado com o presente.
— Se realmente me ama, toque Mozart para mim.

Ambrósio segurou o violino olhou os ouvidos, o estandarte, o cavalete e suspirou de emoção. Era belíssimo! Fez menção de perguntar o preço, mas declinou do projeto. Passou ao pai com carinho. Este retesou e afrouxou as cordas nas cravelhas até achar a afinação ideal. O instante era de solenidade. Ambrósio empunhou o arco com a mão direita, o violino no pescoço. Aos poucos as notas foram se desenhando no movimento rápido dos braços do jovem. De repente o pai gritou com alegria:

— Sinfonia nº 40 em sol menor!

O músico acenou positivamente com a cabeça enquanto se debruçava no instrumento tal coisa cobiçada. De olhos cerrados mal sentia a presença do pai, do mundo, aliás. O corpo maleável, levado pela musicalidade numa espécie de transe. O arco atacava com perfeita dicção produzindo uma inalienável dádiva aos ouvidos do pai.

— Bravo! Bravíssimo! — bradava entre aplausos.

Parou no exato tempo da desafinação. Cordas novas desafinam com facilidade. A cena ficou tatuada na memória como uma espécie de elo.

— Ambrósio!

Segue o chamamento com os olhos e encontra um homem andando afoito até à mesa do café com uma bolsa grande em forma de tubo.

— Ambrósio, quantas eras meu amigo! Tomando um leve conhaque cedinho? Relembrando os velhos tempos de boemia?

Olha-o com os dentes enquanto o cérebro trabalha em busca de algum fichário da pessoa. Vasculha as gavetas e nada, nenhuma pasta na cabeça que indique o aparente amigo.

— O que anda fazendo da vida?
— Trabalho em uma empresa de exportação.

Um grito de socorro. Quem é este homem, meu Deus? Alguém do colégio, da faculdade, um cliente? Cliente não, pelas vestes e intimidades é impossível. Agora pedia um conhaque também, quão inoportuno o desconhecido.

— Empresa de exportação?! — o outro exclamou enquanto acendia um cigarro.
— Sim.
— E a música hombre?! — perguntou antes do assovio de uma canção popular.

Ah, deve ser alguém da orquestra. Tempos de explosão juvenil, uma vontade que o tempo comeu com prazer.

— Desisti há tempos.
— Logo tu, um virtuose no violino, menestrel das serenatas. Não brinque comigo, Ambrósio. E que gravata ridícula. Não tem vergonha?

O desgraçado sabe seu nome. Talvez saiba muito mais, está espreitando desde muito. O que ele quer? Dinheiro? Algumas doses de conhaque? Poderia pedir o que quisesse, daria somente pelo gosto de vê-lo longe. Além disso, traz de novo o passado da música, com glória o que é pior; deixe Ambrósio com seu inocente conhaque, verme.

— Acho que você está exagerando, eu era um violonista comum.
— Não, você é um funcionário comum!

Ele não está para brincadeira, a expressão quase arrotada foi uma punhalada certeira. A cena do natal com violino intrometia-se nas veias de Ambrósio.

— O que sabe de mim?
— O bastante para chamá-lo de tolo. Nem vão acreditar que o Menestrel abandonou a arte musical para se dedicar à burocracia.

Agora é demais, ofensas em meio a diálogo com indivíduo não identificado. Adentrou o espaço como um invasor e já se dá ao direito de definir o que é certo e o que é errado.

— Teremos um concerto hoje à noite no antigo palco, venha nos assistir.
— Talvez eu vá.
— Que desdém, meu Deus! Você se tornou coisa, Ambrósio.
— Prezado, tomou muito conhaque.
— Ambrósio, está sempre assim, sereno? Exploda, hombre! Rasgue essa gravata. Tome lá uma canção.

Sacou da valise um fagote. Estranho, pois Ambrósio não se lembrava de ninguém que soubesse tocar fagote na orquestra. Não se costumava incluir instrumentos de sopro desse tipo na orquestra de câmara, em uma ou outra ocasião, coisa rara. Quem era este ser? Podia não se lembrar dele, mas se lembrava que comumente utilizavam a formação clássica com algumas variações: duetos, trios, quartetos, quintetos e sextetos. Aliás, poucos se aventuravam em experimentar o fagote por ser de execução difícil com chaves dispostas sem ordem.

Da boca do músico surgia o som grave, que de modo algum embrulhava o estômago; os dedos articulados e o sopro correto culminavam numa velha melodia que há anos não era ouvida, apesar da pureza fez com que Ambrósio relembrasse amores selvagens sobre uma grande macieira, uma macieira vistosa que apenas existia sem lugar geográfico, apenas sabia que existia, a macieira e as mulheres, tudo cabia em um som grave de fagote.

— Concerto para fagote em si bemol maior!
— Ainda apaixonado por Mozart?
— Estou atrasado.
— Para quê?
— Para trabalhar.
— E daí?
— Você toca em uma orquestra, entende o significado da pontualidade.
— A arte é sempre pontual, ela merece; mas viver uma vida rodeada de fluxogramas, pilhas de documentos, sentado numa mesma cadeira é deprimente. O horário deve ser deflorado todos os dias. E aquela máquina de escrever chata. Tec, tec, tec.

O estranho tinha razão. A irritação contínua pelo barulho da máquina de escrever; sempre substituir o número um pela letra L minúscula.

— Como sabe disso?
— Do quê?
— Da cadeira, da máquina de escrever. Anda me espionando?
— Ah, Ambrósio, onde está o violino?
— Eu fiz uma pergunta, meu caro.
— Toque o violino de novo, procure respostas nas melodias suspensas.
— Quer me deixar louco, tocar violino não vai ajudar. Ser músico é ser instável, porque apareceu neste café? Eu estava tranqüilamente tomando...
— Morra e ficará tranqüilo!
— Não gosto de aventuras.
— Entendo, gosta de se atrasar sentado em um café remoendo-se com a visão do antigo palco. Ainda pensas em seu pai?
— Deixe-o fora desta conversa.
— Ele nunca o perdoou, morreu de desgosto. Você o traiu, Ambrósio.
— Já avisei...
— Você tem um belo carro.
— O que quer?
— Uma bela casa.
— O que quer estranho?
— Estranho, não me reconhece?
— Não, não me lembro de você, nem quero lembrar. Ninguém tocava fagote tão bem na orquestra.
— Me chame como quiser o que escolher será o meu nome. Toque o violino!
Levantou-se, o homem.
— Preciso ir, o último gole do maravilhoso conhaque! Um brinde a você, Ambrósio, ao seu medo de ser mais, a cada dia medíocre, à cadeira que suporta o seu traseiro gordo por uma década, à sujeira que cobre o violino trancafiado no armário do porão, à orquestra, à sua consciência e a Mozart, o eterno.

Dizendo isso desapareceu em um redemoinho no jardim municipal sem pagar pelo conhaque. Como se perdesse a matéria, tornando-se pó.

— Preciso de uma explicação, Ambrósio.
— O que mais preciso dizer Sousa? Dê-me um tempo.
— Tempo? Está vendo aquele ponteiro menor? Está no dez e o outro também, significa que não temos tempo. O francês deve chegar em menos de uma hora, seja gentil e lave esse rosto, você está um trapo.

Os anos foram se esvaindo. Um dia, sem se dar conta, Ambrósio estava aposentado. Morreu pouco depois sem Mozart, sem violino, sem um amigo real, registrado no submundo da estatística, apenas.

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