terça-feira, 27 de outubro de 2009

O Rebento

Foi na noite de uma quarta-feira que levaram mamãe no carro de passeio. Acordei assustada com a movimentação de pés e vozes; mamãe respirava com dificuldade e andava lentamente com uma das mãos nas costas, meu pai era o auxílio para que não caísse. Mesmo com as poucas horas da noite eu já tinha recebido ordens para dormir, mas agora não poderia, nem a eles cabia o direito de me fazer ir à cama novamente. Com a urgência da situação mal notaram minha pequenina presença na sala a espreitar, belos tempos quando um simples gemido ou um respirar mais ofegante eram motivos para atenção circunspecta. Encontrei mamãe molhada, jorrando muita água de si, derramando por todo percurso que se iniciava na cozinha e dava na sala de estar. Admito que me senti nauseada com a descoberta, é assim que se vem ao mundo: no meio do nojo. Aos poucos fui notando que era o indício da escassez de tempo. Meus tios acompanharam o casal à maternidade, titia se encarregou da limpeza. A megera não enxergou em mim uma possível companheira no esfregão, então virou o corpo num gesto de desdém.


Sentei-me no sofá de canto meio absorta com a repentina correria das gentes grandes. Bocejei algumas vezes antes de ouvir a titia mandar-me voltar ao quarto de dormir. Discordei com a cabeça e um leve gemido, mas sua ignorância era tanta que nem atentou para minha negativa, continuou no serviço doméstico; a ordem tinha por objetivo o luxo do poder, para ela pouco importava se eu iria ficar no sofá, voltar a dormir, dançar na chuva ou morrer de inanição, a estrita premência era a sujeira que pedia para ser removida. Não muito, antes de engatinhar, carregava-me no colo com o orgulho de quase mãe, apresentou-me à vizinha da frente com um carinho sacro e já me reservava destinos para quinze, vinte anos. Escolheu-me advogada, um velho sonho seu que foi demolido, conforme seu dizer, pelos maus professores do colégio secundário. Ouvi papai mencionar à mesa que ela se trancafiou no quarto com medo de gente, chamou-a fracassada. Tornou-se beata muito jovem, às vezes me obrigava a ir à igreja aos domingos, bem cedinho, ouvir os discursos soporíferos do padre; mandava-me rezar o pai-nosso, eu fingia orar em silêncio enquanto pensava no guisado de mamãe e mousse de sobremesa.


Dia desses assistindo à televisão, a repórter entrevistava a mãe de um menino que nascera sem os olhos. Um mal raro de nome esquisito – soava francês –, uma disfunção genética sem possibilidades de ser remediada. Ao abrir os olhos viam-se dois círculos negros, uma cena asquerosa, deveria ser proibida imagens dessa espécie naquele horário. A mãe chorando em árabe e o bebê imóvel como pedra na insistência de não cerrar as pálpebras. Por mais inimaginável começou a brotar em mim um súbito desejo de que o filho de mamãe nascesse assim, com dois buracos negros no rosto, talvez entrevistassem mamãe, as estações de TV ficariam sedentas por filmar o menino sem olhos; nem precisariam viajar a um país distante, o fenômeno residiria em nossa pátria. No fundo o meu irmãozinho seria o orgulho da nação. Os transeuntes apontariam seus dedos indicadores ferozes enquanto a secretária de casa passeava com ele no jardim público, certamente estaria na mídia relatando a sua deficiência, quem sabe ganharia algum dinheiro com isso. Mesmo com essas vantagens, o melhor estava em nossa relação; ele nunca iria me ver, meus cabelos castanhos, minha orelha furada, a girafa de pelúcia na cantoneira, os arranha-céus, o tique nervoso de seu pai. Tamanha vulnerabilidade que precisaria sempre de um ajudante. Eu estaria sempre lá, pronta para ser o cão-guia da infeliz criatura. Na verdade um ente que me pertencia, minha posse com quem compartilharia as coisas, um amigo invisível com a diferença de ser visível. Apertá-lo-ia ao peito com toda força, com o amor fraternal. Com linhas imaginárias nas articulações ele caminharia o meu caminho. Nasceria assim, então. Essa, a única forma, excêntrica de fato, para que eu não o odiasse.


Ao passo que titia terminava o serviço eu me detinha em ver o álbum da família, ela achou estranho, a hora não era própria para aquilo. Algo a impeliu de me repreender e se sentou ao meu lado comentando cada fotografia. “Nessa você tinha três meses” narrava com felicidade de tia. Papai foi cuidadoso em cada detalhe fez um grande livro com as imagens em ordem cronológica, em variados ambientes; sinto falta das noites em que ele contava o dia em que soube da gravidez de mamãe. Estava ao celular numa viagem de negócios, por pouco não bate o carro de trabalho no semáforo, quando freou bruscamente saiu alucinado do veículo e gritou aos companheiros de trânsito “eu vou ser pai!” e num gesto anormal todos os motoristas o aplaudiram, pelo espanto do homem sabiam que era o primeiro. É uma história singela, em cada narração havia um fato que recontado parecia inédito, uma outra entonação, as cenas modificadas de posição perdiam a mesmice e o final, ainda que sabido, ganhava ares de surpresa e tudo terminava num grande abraço entre as almofadas do tapete, rolávamos como os animaizinhos do zoológico. E mamãe! Mamãe tem cheiro de doce de abóbora, em muitos fins-de-semana ficávamos as duas sozinhas em casa, ela aproveitava os dois dias sem doméstica para se dedicar à arte da culinária, me enchia de pudim, torta de avelã, mousse de maracujá e o meu predileto: doce de abóbora. “É pra você ficar com pernas grossas”, dizia. Eu queria ter pernas grossas, acho que era coisa de mulher, não sei, era o que mamãe sempre dizia em conversas com outras, “coisas de mulher”, como se não ter pernas grossas fosse um defeito irrecuperável. “Coma agora, aos dezoito só pensará em dieta”. Então eu comia, mais para agradar mamãe, uma forma de amá-la e ser amada.

Quando mamãe foi criando barriga, papai incumbiu mais secretárias para diversos afazeres, inclusive aos fins-de-semana, a casa ficava muito pequena, apertada. E os dias monótonos. Papai já não tinha mais tempo para histórias e com os meses fui me tornando mais dispensável. “Olha só, sua mãe grávida!”. Já estávamos no final do álbum quando titia apontou a barriga de mamãe, uma barriga estrambótica com protuberâncias nas laterais, tão grande que mal podia andar, era feia a barriga de mamãe, diria mais: repugnante. Melhor seria que murchasse, ficasse a tábua de antes.

Pela manhã meus tios me levaram à maternidade, papai pegou-me nos braços e caminhamos alguns metros até o quarto. Mamãe me viu entrar e me chamou carinhosamente. De início fiquei paralisada com a coisa em seus braços, miúdo como um rato. E me movi com lentidão até à cama. “Este é seu irmãozinho”. Ela segurou a minha mão, fez o mesmo com o da criança, estávamos juntos. Era difícil suportar a dor. Empenhava-me em aparentar normalidade quando, em um instante de distração, o rebento abriu os olhos para mim, grandes, incomuns, assustadores, eram os olhos do próprio demônio, resplandeciam um mal que nunca sentira, antes de fechá-los esboçou um sorriso maroto, imperceptível para muitos, mas que para mim representava o último tiro de uma grande guerra.

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